quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Tinta preta nas mãos, desafiando o sistema em São Paulo


São Paulo, Brasil _ As autoridades desta megacidade estão lutando há anos contra o que elas chamam de "poluição visual", proibindo outdoors, demolindo arranha-céus abandonados e planejando acabar com monstruosidades de concreto como o Elevado Costa e Silva, conhecido pelos paulistanos como Minhocão.
Mas a batalha pela limpeza dos horizontes da cidade se entrelaça com o profundo conflito social entre pobres e ricos no Brasil, onde um grupo de pessoas revoltadas e desprivilegiadas desenvolveu uma forma única de expressão.
Para lutar contra o sistema, os jovens se armam com tinta preta, rolinhos de pintura, sprays e uma incrível dose de coragem. Seu alvo são as queridas paisagens da cidade.
"Vivemos em uma guerra de classes e como em qualquer guerra, algumas pessoas acabam se ferindo", afirmou Rafael Guedes Augustaitiz, de 27 anos. "Eles nos comparam com bárbaros e talvez tenham um pouco de razão."
Augustaitiz faz parte da subcultura dos pichadores, autores do que foi descrito por um pesquisador como um "alfabeto projetado para a invasão urbana". Em São Paulo, prédios públicos, torres residenciais e até monumentos estão cobertos de letras que lembram o antigo alfabeto rúnico da Escandinávia.
Os pichadores mais ousados arriscam suas vidas, escalando durante a noite as fachadas dos prédios com o objetivo de deixar sua marca nos arranha-céus sujos de fuligem. Muitos já mergulharam para a morte do alto desses edifícios.
As pichações paulistanas refletem em suas letras a decadência da cidade e a profunda divisão social que ainda define São Paulo, uma metrópole cuja população se aproxima dos 20 milhões de pessoas. Elas nos ajudam a lembrar que o boom econômico vivido pelo Brasil ainda não foi capaz de solucionar alguns de seus problemas sociais, que possivelmente se aprofundaram, apesar dos recentes avanços na distribuição de renda.

Em janeiro, os brasileiros ficaram chocados com os confrontos em São José dos Campos, a cerca de 80 quilômetros de São Paulo, quando a polícia arrasou uma ocupação irregular, expulsando por volta de 6.000 moradores da área.
Indignados com o ocorrido e com a ação violenta da polícia na região conhecida como Cracolândia, os cidadãos organizaram uma manifestação contra o prefeito Gilberto Kassab. Seu carro foi alvejado por ovos enquanto ele tentava fugir do local.
"É bom ver que as pessoas estão se indignando contra nossa elite", afirmou Djan Ivson Silva, líder de uma gangue de pichadores. "Nós corremos riscos para lembrar a sociedade de que essa cidade é visualmente agressiva e que ela é hostil para qualquer pessoa que não seja rica."
O conflito com o mundo da arte é fundamental para esse grupo de subversivos, como eles próprios se descrevem, se legitime. Ao passo que outras modalidades do grafite paulistano são aclamadas como arte urbana, sendo expostas em galerias brasileiras e internacionais, a pichação continua desafiando convenções e gerando reações intensas entre aqueles que já se cansaram dos rabiscos espalhados por toda a cidade.
"Elas deixam os prédios com uma aparência horrível e com as paredes sujas", afirmou a secretária Telma Sabino, de 45 anos, repetindo a fala de muitos outros paulistanos contrários às pichações.
Contudo, o fenômeno da pichação fascina pesquisadores da cultura urbana, que têm estudado seu desenvolvimento desde que ela apareceu no início dos anos 80. Para eles, a pichação é muito diferente de outras formas de grafite ao redor do mundo e se inspira no "lettering", um tipo de grafite criado em Nova York nos anos 70.
Ao invés de utilizarem sprays caros, os pichadores geralmente fazem seus desenhos com rolos para pintura e tinta preta. Segundo o pesquisador francês François Chastanet, autor de um livro sobre a pichação, as letras foram inspiradas em capas de discos de bandas estrangeiras como o Iron Maiden e o AC/DC.

O resultado é uma escrita codificada, com letras indecifráveis para quem não faz parte do grupo. Chastanet afirma que fica admirado com a forma como esse alfabeto ilegal se espalhou por uma área tão vasta da metrópole.
"Para os moradores de São Paulo, isso não passa de vandalismo, mas, para nós, é importante observar a onipresença dessa maravilha urbana", afirmou Chastanet.
Os grupos de pichadores geralmente são compostos por dez membros, em sua maioria homens jovens de bairros pobres da periferia de São Paulo, que escrevem frases curtas como "Terrorismo Poético", ou seus próprios nomes, como "Zé". Seus textos quase nunca têm um conteúdo explicitamente político. Às vezes, os pichadores apenas escrevem os nomes de suas gangues, como "Cripta". Atualmente, esses grupos se organizam em associações mais amplas, chamadas de "grifes", que podem incluir mais de 50 gangues diferentes.
As grifes, com nomes como "Os + Imundos" ou "Os Registrados no Código Penal", competem umas contra as outras para pintar prédios cobiçados. Suas brigas de rua são violentas e com frequência acabam em mortes. Essas guerras, como são chamadas pelos membros das grifes, podem durar anos.
Os pichadores não se consideram grafiteiros, já que os grafites coloridos, segundo seu ponto de vista, são uma forma menor de expressão, já que é mais fácil pintá-los no nível da rua e uma vez que seus autores são frequentemente cooptados pelas galerias de arte.
O mercado de arte da cidade não entende bem qual é o apelo artístico da pichação, em especial depois que uma gangue invadiu a Bienal de São Paulo e a galeria Choque Cultural, um importante espaço para artistas de rua, desfigurando uma série de obras originais.

Outros críticos da pichação questionam se a prática é tão politizada quanto dizem alguns dos líderes das gangues, ou se ela é apenas uma forma de expressão vazia que degrada a cidade, ao invés de explorar novos meios de melhorá-la.
Em 2009, o documentário "Pixo" acompanhou a vida arriscada dos pichadores. O diretor João Wainer observou membros de gangues que escalavam fachadas de prédios sem qualquer equipamento. "Eu tinha medo que algum deles morresse bem na minha frente", comentou Wainer.
Daquela vez, ninguém caiu. Contudo, desde que a pichação se popularizou em outras cidades brasileiras _ no ano passado, até mesmo o braço do Cristo Redentor foi alvo de gangues _ o número de fatalidades cresceu drasticamente.
Em Campinas, um jovem de 18 anos morreu depois de cair do alto de um prédio que estava pichando e bater a cabeça. Em outro caso, um guarda noturno de Belo Horizonte matou a tiros um pichador que se preparava para escrever em uma fachada. A sociedade derrama poucas lágrimas por esses mortos.
Entretanto, em uma reviravolta que chocaria muitos paulistanos e mesmo alguns pichadores, o mundo da arte internacional está começando a adotar a prática. Uma das gangues foi até convidada para participar da Bienal de Arte Contemporânea de Berlim.
Para Luiz Henrique do Vale Salles, 40 anos, isso já é demais. Hoje lavador de carros, ele ganhava cerca de vinte dólares por dia para limpar muros pichados, e disse que os vândalos voltavam a sujar prédios que ele acabara de limpar. Ele detestava o emprego.
"Eu tinha que limpar a sujeira que eles deixavam", afirmou, "e me sentia muito mal com isso".



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